A primeira peça publicitária com temática olímpica em jornais cariocas e os Jogos Rio-2016

No dia três de julho de 1920, 21 atletas brasileiros (mais dirigentes e jornalistas), todos homens, embarcavam para a Antuérpia. Lá, a delegação brasileira participaria pela primeira vez de uma edição dos Jogos Olímpicos. Todos os jornais da grande mídia carioca repercutiram o fato em suas páginas esportivas.

Pesquisava esse evento histórico quando encontrei o que acredito ser a primeira propaganda com motivo olímpico presente na imprensa carioca. Uma loja de departamentos (Parc Royal), bastante famosa à época, destinava um anúncio às torcedoras brasileiras que se despediriam dos “campeões brasileiros”, quando do embarque da delegação no porto do Rio.

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O Paiz, 03/07/1920, p. 8. Na legenda: “Saudosas, despedem-se as ‘torcedoras dos esforçados campeões brasileiros. Mas, em breve, as mãos das nossas gentis patrícias os cingirão de louros, pelas glórias que conquistarem para o Brasil”.

Esse post poderia ser uma crítica ao sexismo da peça publicitária, que coloca a mulher em um papel de mera espectadora do esporte, o qual seria praticado apenas por homens, os “campeões brasileiros”. Não será esse, contudo, o foco do texto dessa semana. Na verdade, pretendo utilizar o material da Parc Royal como pontapé inicial para responder a questão: seria esse anúncio permitido durante os Jogos do Rio-2016?

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Loja Parc Royal no Rio de Janeiro. Foto de Augusto Malta.

Durante os referidos Jogos, o caso da Livraria Folha Seca, localizada no Centro do Rio, teve relativa repercussão e visibilidade na imprensa e nas redes sociais. A livraria fora notificada pela Prefeitura do Rio, a pedido do Comitê Olímpico Internacional, pelo uso indevido da palavra “olímpica”. A alegação é de que haveria infração aos direitos de uma “das propriedades protegidas do Comitê Rio 2016”.

Com esse caso respondo a pergunta inicial? Ainda não. Afinal, o Parc Royal não faz referência explícita aos termos olímpicos, ainda que subterraneamente se refira aos Jogos Olímpicos da Antuérpia de 1920. Essa não seria uma questão se a empresa brasileira fosse uma das patrocinadoras oficiais do evento ou parceira do Comitê Olímpico Internacional (clique nos links para ver os apoiadores dos Jogos do Rio). Aos meandros dos usos e apropriações das marcas e símbolos olímpicos, dedicarei as linhas a seguir.

Antes de começar, cabe um esclarecimento a respeito da peculiaridade do COI enquanto organização. O Comitê está no meio do caminho entre uma instituição privada stricto sensu e uma entidade pública, pois gere um bem comum (os esportes olímpicos), mas possui uma mentalidade fortemente corporativa e de mercado. Sua lógica de atuação é estritamente similar a de empresas de capital aberto, uma vez que busca parcerias comerciais que viabilizem seu maior evento, os Jogos Olímpicos. Em seu site oficial, o COI faz questão de frisar que ele e todas as organizações vinculadas ao movimento olímpico são inteiramente financiadas com capital privado. É curioso, entretanto, observarmos que grande parte do sucesso do evento depende, também, do capital público, empregado para construção dos equipamentos esportivos e da infraestrutura das cidades-sede. Por outro lado, dentre os objetivos que compõem a missão do COI enquanto instituição estão incluídas diretrizes ligadas apenas ao movimento olímpico e ao esporte. Não existe menção ao lucro ou a outros termos próprios do “mercado” no principal documento norteador do Movimento Olímpico Internacional: a Carta olímpica.

O COI se auto-intitula a “autoridade suprema do olimpismo”. Detendo o direito sobre os Jogos Olímpicos e os sub-produtos desse megaevento, o COI pode regular o uso dessas marcas. Para os Jogos de 2016, existiam ao menos três guias de proteção às marcas, um voltado para as organizações esportivas, um para o mercado publicitário e anunciantes, e outro para o setor de turismo, hotelaria e lazer. Além deles, havia ainda um guia prático, de fácil leitura, fartamente ilustrado e com apenas nove páginas. Todos eles estavam publicados no site oficial da Rio-2016. Atualmente, todos os endereços eletrônicos associados a “www.rio2016.com” redirecionam para o site do COI.

Dentre as marcas sob controle do COI estão incluídas inúmeras palavras e expressões. Segundo o “Guia de Proteção às Marcas”, essas “expressões são denominadas ‘marcas nominativas’ e estão registradas mundialmente em nome do COI, IPC e do Comitê Rio 2016”. Dentre elas, estão incluídas: Jogos Rio 2016, Jogos Olímpicos e Paralímpicos, Jogos Olímpicos, Jogos Paralímpicos, Jogos Olímpicos Rio 2016, XXXI Jogos Olímpicos Rio, Olimpíadas Rio, Olimpíadas 2016, Rio Paralimpíadas 2016, Rio Paralimpíadas, Rio 2016.  Além dessas, todas as “suas abreviações, traduções e variações” também estão incluídas. A lista se estende ainda para os símbolos, imagens, vídeos e quase todos os demais elementos associados aos Jogos Olímpicos. O uso não comercial só é autorizado para as organizações esportivas mediante a observação das regras do referido documento. As “manifestações populares e educacionais”, desde que sem fins comerciais, também podem se utilizar das marcas olímpicas.

É interessante observarmos como o COI e seus parceiros comerciais se colocam como detentores da própria história dos jogos, e não apenas de seus símbolos:

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Guia de Proteção às Marcas, p. 12

O Guia citado era composto de mais de 41 páginas com instruções sobre os patrocínios olímpicos, os benefícios, as regras e demais condições de uso dos nomes registrados. O segundo item do documento se propunha a explicar “Por que precisamos proteger as marcas oficiais dos Jogos Rio 2016?”. Uma das razões apontadas seria: “Assim, para que o Comitê Rio 2016 possa garantir a própria realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, ele precisa garantir também a preservação dos direitos exclusivos dos patrocinadores de explorar as marcas oficiais Rio 2016 com propósito comercial”. Em outras palavras, o que o COI está dizendo é que ele depende das empresas privadas e, por isso, garante a elas proteção contra o marketing de emboscada.

O marketing de emboscada pode ser praticado por grandes empresas que, por não terem comprado sua fatia de patrocínio, buscam burlar as regras e veicular anúncios atrelando suas marcas àquela dos Jogos Olímpicos. Esse não era o caso da Livraria Folha Seca. Existe uma miríade de outros usos de palavras e expressões relacionados aos Jogos, principalmente em livros, que apesar de “violarem” em certo sentido os direitos de propriedade de marca, não afetam sensivelmente os benefícios de patrocinar os Jogos. A meu ver, se o bom senso tivesse algum espaço, o uso feito pela livraria poderia ser permitido.

O Guia de Proteção às Marcas menciona ainda quais regulamentações federais e estaduais que suportam as medidas coercitivas adotadas pelo COI (e que faz parte das demandas exigidas pela entidade para as cidades-sede). São elas: Lei nº 9.279/96, Lei nº 9.615/98, Tratado de Nairóbi (o Brasil é signatário), Lei nº 9.610/98, Lei nº 8.078/90 –, além de normativas municipais – Ato Olímpico Federal (Lei nº 12.035 /2009), Ato Olímpico Estadual (Decreto Estadual nº 41.839/2009), Ato Olímpico Municipal (Decreto Municipal nº 30.379/2009). Outros estados, como Minas Gerais, Bahia e São Paulo, também aprovaram legislações próprias, visando proteger os interesses dos Jogos Rio 2016.

Até aqui, vimos como o argumento do COI e do Comitê Organizador estavam alinhados: prejudicar o investimento dos parceiros oficiais significaria que o impacto recairia sobre a organização dos próprios Jogos. Essa afirmação, entretanto, pode ser colocada em perspectiva quando visualizamos o gráfico abaixo, que traz as principais fontes de rendimento do COI. Além de os patrocínios não serem a principal fonte, na tabela não estão incluídos os gastos das cidades-sede, ou seja, dos Estados, com o evento.

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Site do COI

Quase todos os públicos de interesse do COI estavam sujeitos às restrições de uso das marcas olímpicas. Os próprios atletas deveriam submeter à apreciação do COI qualquer atuação em peças publicitárias durante o período dos Jogos. O uso por editoras e por empresas jornalísticas também era passível de sanções. Os mecanismos coercitivos também são severos para empresas que patrocinam atletas ou alguma modalidade esportiva durante o ciclo olímpico, mas que não adquiriram os direitos de uso das marcas vinculadas à Rio 2016. Vejamos o que diz o Guia das Marcas: “Algumas organizações e instituições podem tentar tirar proveito do relacionamento comercial (parceria e patrocínio) que possuem com as confederações esportivas nacionais e os atletas. Porém, tal ação pode prejudicar os investimentos dos patrocinadores oficiais destinados tanto aos Jogos Rio 2016 como aos comitês Olímpicos e Paralímpicos nacionais”. A imagem abaixo, extraída do Guia, explica o que podia e não podia ser feito.

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Guia de Proteção às Marcas, p. 36

Esse texto buscou apresentar alguns dados preliminares para aqueles interessados no tema. Quanto à pergunta inicial, acredito que o Parc Royal atendia, já em 1920, as recomendações do COI para os Jogos de 2016. A peça publicitária se utilizava do imaginário olímpico, porém sem referenciar explicitamente nenhuma das palavras e expressões cujos direitos pertencem ao COI. No entanto, essa astúcia poderia ser enquadrada na definição do COI para marketing de emboscada*. A atitude mais prudente então seria demandar autorização prévia do COI e/ou do Comitê Organizador do Rio/2016.

*“O COI define marketing de emboscada como qualquer tentativa, intencional ou não, de criar uma falsa e não autorizada associação comercial com os Jogos Olímpicos e Paralímpicos ou com o Movimento Olímpico e Paralímpico. Associar aos Jogos marcas sem qualquer relação com o evento prejudica diretamente os investimentos dos parceiros oficiais. ” (Guia de Proteção às Marcas, p. 38).

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