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“Prensa, decime que se siente…”

“Desde manhã que são nossos hóspedes os bravos argentinos que vêm jogar com os nossos foot-ballers três partidas do impressionante e empolgante jogo. O valor dessa visita […] É uma approximação intelligente entre os dous paízes, sem diplomacia mas com a forte correnteza das sympathias que nos arrastam para grandes amisades para os grandes fervores. Nossos amigos e nossos hospedes, os argentinos vêm se divertir e offerecer à nossa população, já agora obsecada por essa interessantíssima luta, uma nova sensação e um novo prazer. Logo mais, no vasto campo da rua Guanabara, onde se ferirá a grande luta pacífica, não haverá nem ódios nem sangue. Apenas um grande enthusiasmo por esses rapazes, moços e fortes, que vêm disputar com a nossa mocidade esse concurso de força e de destreza que é um match de foot-ball. Bem vindos sejam”.

O trecho é do jornal “Gazeta de Notícias” do dia 09 de julho de 1908, ano em que temos os primeiros registros de jogos entre atletas brasileiros e argentinos nos gramados do país. Há 108 anos, a equipe platina fazia uma excursão pelo Brasil e jogou amistosos contra combinados de estrangeiros que atuavam por aqui, de paulistas e de cariocas (vale lembrar que a Seleção Brasileira só seria reconhecida como tal seis anos depois). Para esta partida, que o jornal “Gazeta de Notícias” chamou de “argentinos contra brasileiros”, era um combinado de atletas de equipes do Rio de Janeiro. Vitória dos visitantes: 3×2, numa tarde “diferente” no Rio de Janeiro:

Dia carregado, com uma chuvinha miúda a peneirar do céo… Que dia! Mas desde cedo a cidade tem uma preocupação, a ideia fixa do “match” de foot-ball que se vai realizar no “ground” de Guanabara. Há negócios? Há operações de bolsas? Há comércio aberto? Subiu o cambio ou desceu? Os theatros terão novidades? Há guerras pelo mundo? É preciso ir à repartição, trabalhar, escrever, viver como no outro dia? Qual! Que importa? A única preocupação dominante é o “match” de “foot-ball” entre argentinos e brasileiros. Choverá? Fará sol? Realisar-se-á o primeiro encontro? E desde manhã a cidade apresentava esse bizarro aspecto, o Rio de Janeiro inteiro com uma única preocupação: a partida entre argentinos e brasileiros. Quem passasse pelas ruas centraes tinha a impressão de que era um dia de festa, um dia santificado. Estava tudo parado à espera. À espera de que? Da batalha, da primeira batalha internacional de sport no Rio (GAZETA DE NOTÍCIAS, 10/07/1908, capa).

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O extinto jornal carioca “Gazeta de Notícias” fez um dos primeiros relatos da imprensa sobre a seleção argentina de futebol no Brasil.

Desde esses primeiros confrontos, Brasil x Argentina mexe com a expectativa dos torcedores. No próximo dia 10 de novembro, os argentinos serão novamente nossos “hóspedes”. Contudo, a narrativa da imprensa, muito provavelmente, deve ir mais no sentido de reforçar a rivalidade construída ao longo de mais de um século (tanto pelos jogos marcantes, quanto por postura de torcedores e pela imprensa) do que fora o discurso, em 1908, do jornal que chamava de uma “luta pacífica”, sem “ódio, nem sangue”.

O primeiro confronto entre os dois países como seleções data de 20 de setembro de 1914, um 3×0 Argentina em Buenos Aires. Uma semana depois, a primeira vitória brasileira: 1×0, na mesma capital platina. Já a primeira vez que se enfrentaram em território brasileiro foi no Sul-americano de 1919, vencido pelo Brasil: 3×1, no Rio de Janeiro, para os donos da casa.

Desde então, os argentinos costumam, vez ou outra, conseguir uma vitória para cima dos anfitriões: em 1939, 5×1 em São Januário; em 1940, 3×0 e em 1945, 4×3, ambos em São Paulo; na estreia de Pelé, 2×1 Argentina no Maracanã; e ainda venceram em 1963 (3×2), 1964 (3×0), 1970 (2×0) e 1998 (1×0 no jogo de despedida antes de ir para a Copa da França). Ao todo, em 39 jogos, 8 derrotas brasileiras em casa. A Copa de 2014 mostrou como os argentinos se sentem bem por aqui. Chegaram à final, entoando um canto que perguntava como os brasileiros se sentiam em ter em casa o “papai” deles.

A provocação é fruto de um processo de construção que vem, há anos, colocando a Argentina como o principal adversário do Brasil. A rivalidade que vemos hoje entre os países sul-americanos é tema de pesquisa do sociólogo Ronaldo Helal. Entre algumas das questões levantadas por ele, está a necessidade de ter um antagonista no esporte. E o brasileiro escolheu a Argentina. Muito por conta da decadência uruguaia na metade do século passado e da construção da imprensa. De acordo com ele, isso é reforçado a partir de 1998, com o diário esportivo argentino “Olé!”, que adota uma postura mais de torcida do que de jornalismo.

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Primeira página do diário esportivo “Olé”, da Argentina, no dia seguinte ao 7 a 1, ironiza a derrota do Brasil contra a Alemanha.

Com o protagonismo da Rede Globo nas transmissões da seleção brasileira e tendo no narrador Galvão Bueno o seu “mestre de cerimônias”, o lado brasileiro da imprensa também buscou ratificar os alvicelestes como nossos principais adversários com frases como: “Ganhar é muito bom. Ganhar da Argentina é melhor ainda”.

Hoje, essa mesma imprensa que promove essa relação que leva um sentimento pugnaz aos campos tem uma missão paralela: resgatar o sentido de “pátria de chuteiras” e a identificação do torcedor com a equipe. E vencer um adversário como a Argentina, em casa, é fundamental neste processo.

Os resultados atuais, a forma da equipe jogar e a “empatia”bilidade de Tite contribuem para essa reaproximação. A seleção está na liderança, joga bem, tem um jovem inspirador – Gabriel Jesus – e um craque inspirado – Neymar. O adversário está no limbo, mas tem Messi. Voltaremos ao palco onde fomos massacrados como anfitriões – 7×1 contra a Alemanha. Elementos que oferecem à imprensa diversas possibilidades de cobertura e discursos sobre esse confronto.

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Da esquerda para direita, Gabriel Jesus, Tite e Neymar representam o “renascimento do futebol brasileiro” difundido pela imprensa após o ouro olímpico e a liderança nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018.

Resta aguardar para saber se os meios de comunicação – promotores do evento – vão retratar os argentinos como em 1908, onde eram “nossos amigos” que viriam “se divertir e offerecer à nossa população” o que eles chamavam de “uma nova sensação e um novo prazer” ou se vamos ter mais um discurso bélico de “nós” “contra” “eles”.

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