Imprensa e futebol-arte: as narrativas da nossa “essência” futebolística

Em dezembro de 2014, defendi minha dissertação de Mestrado com orientação do professor Ronaldo Helal e que procurava refletir sobre a construção da ideia de que temos um estilo de futebol singular, baseado no talento de nossos atletas. Ampliamos a pesquisa, que inicialmente se limitou as Copas de 1970, 1982, 1982 e 1994, até a Copa de 2014. O resultado será publicado ainda este ano pela Editora Prismas. O tema central deste livro é mostrar como essa ideia de “sermos o país do futebol” e possuirmos um estilo único de praticar este esporte surgiu e passou por ajustes e mudanças até a Copa de 2014.

No contexto da formação de uma nova identidade nacional nos anos 1930, o futebol ganhou um papel decisivo, e a Copa de 1938 fez o país parar para acompanhar pelo rádio o time de Leônidas e Domingos da Guia. Nascia, além da tradição nacional de vibrar por onze jogadores em uma Copa, um estilo que nos diferenciava dos demais países, marcando uma “originalidade brasileira”. Mesmo na “tragédia nacional” de 1950, exaltou-se o nosso estilo, que, oito anos depois, foi coroado com a conquista da Copa do Mundo, tendo Garrincha e Pelé como os símbolos de “nossa essência”. Em 1970, o futebol-arte se consolidou, não só no Brasil, mas no mundo, demarcando que a maneira de jogar daquela seleção era a nossa identidade. Derrotas como a de 1982 foram menos sofridas na narrativa da imprensa por conta de seguirmos o estilo nacional? O time moderno e competitivo de 1990 e 2010 foi renegado pela imprensa por não seguir nossas características? E o título de 1994, foi menos brasileiro por se basear no empenho tático, quase europeu, dos jogadores? Em 2002 tivemos modernidade e brasilidade na família Scolari? Por que o suposto estilo alegre e ofensivo do atacante Bernard não descadeirou os alemães naquela fatídica semifinal de 2014? Até que ponto “sermos reféns” de um estilo que só pode ser praticado quando temos jogadores excepcionais prejudica o nosso futebol? Quais os mecanismos utilizados pela imprensa para consolidar, reafirmar e ajustar essa representação de nossa essência futebolística?

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A seleção de 2002 possuía jogadores de reconhecido talento, como Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo e Rivaldo, e uma união de grupo, características ressaltadas pela imprensa na época do pentacampeonato mundial. Mas o aspecto tático do time comandado por Scolari foi injustamente pouco mencionado: na Coréia e no Japão, o Brasil foi o melhor ataque (18 gols), 2° melhor defesa (em média de gols sofridos/jogo) e teve a 3° menor média de cartões amarelos/jogo (atrás apenas de Croácia e Irlanda, eliminadas na 1° fase e nas oitavas respectivamente).

Respostas para estes questionamentos são o norte desta publicação. O livro propõe reflexões importantes tanto para jornalistas esportivos como para pesquisadores e entusiastas do esporte e da seleção nacional. Será que realmente somos os melhores do mundo nesse esporte?

Acreditamos que a repetição exaustiva de determinados pensamentos pelos meios de comunicação possui uma influência na formação do imaginário social. Esse imaginário mexe com o pathos de cada pessoa, fazendo-a acreditar e agir por conta da fé naquela ideologia. A imprensa também tem o papel de moldar determinadas representações. Se nas narrativas midiáticas somos reconhecidos e vencemos unicamente por conta de nosso talento, é preciso manter o foco neste atributo. A sociologia utiliza o termo self, que adaptamos para refletir sobre a representação da seleção brasileira. O self seria um projeto simbólico que os atores envolvidos na representação constroem ativamente sobre si mesmo perante as situações sociais vivenciadas em sociedade, através dos materiais simbólicos existentes, criando sua identidade e guiando sua representação. Ao ter seu papel de representar a nação, exercer nossa brasilidade pelo “futebol-arte” e por conta da construção sobre as vitórias “ser a melhor do mundo”, sua função se torna previamente estabelecida e partilhada com todos os integrantes da sociedade, inserindo-se no imaginário social. Deste modo, a seleção vai agrupar vários elementos e símbolos de uma representação prévia impactando em sua própria performance. Logicamente, essa concepção também se modifica ao longo do tempo, com a inclusão de novas formas simbólicas que podem diminuir a identificação e voltá-la para o lado do consumo, adaptando e reconstruindo o self do seleção.

Entretanto, acreditar que o futebol é só um jogo dentro da construção deste esporte na cultura nacional é um argumento que não contempla e reflete a estrutura social do país. Ele representa muito mais do que um jogo. A questão é: a representação da seleção é ancorada em elementos totalmente arbitrários e que não levam em conta que ganhar ou perder fazem parte do jogo. Quando apenas o talento nato do brasileiro e vencer sempre cumprem efetivamente a representação, a chance de ficarmos reféns desta obsessão é grande. Por que não admitirmos na grande narrativa sobre a seleção que não foi apenas o talento nacional que nos levou às conquistas? Em 1958 e 1962 tivemos organização e planejamento apontados timidamente pela própria imprensa como exemplares e posteriormente esquecidos por não fazer parte dessa representação única. Em 1970, 1994 e 2002 também tivemos elementos alheios ao que denominamos “futebol-arte” e vencemos, ao passo que em 1982 tivemos o que sempre foi cobrado e mesmo assim perdemos. Qual seleção já venceu uma Copa sem ter um grande talento? Por que tomamos como unicamente nacional a habilidade para o futebol? Por que não ampliar as bases de nosso self ? Por que intensificar o que auxilia a narrativa e esconder outros fatores estranhos a ela de modo tão pouco reflexivo?

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A derrota do Brasil para a Itália por 3 a 2 na Copa de 1982, conhecida como a “Tragédia do Sarria”, mostrou, por outro lado, que o “futebol-arte” não é a única forma de vencer uma partida. Por termos, ao longo dos tempos, grandes jogadores como Pelé, Garrincha, Vavá, Jairzinho, Zico e outros, ficamos mal-acostumados e viciados em apenas uma estratégia de jogo: atacar, driblar, convencer, encantar.

Não existe uma fórmula mágica para vencer o jogo. Não são características que procuramos enquadrar como tipicamente nacionais que nos fizeram vencer. Enquanto acreditarmos que somente elas contribuem para uma conquista e esquecermos todos os outros fatores que influenciam no jogo, a narrativa terá que se contorcer para justificar o óbvio: vence quem joga melhor. E jogar é algo complexo, depende de alguns elementos que a “ciência”, por mais que classifique e tente entender, não consegue dominar. Ainda bem, pois está aí a grande sedução do jogo que absorve intensamente quem se envolve nele, seja torcedor ou jogador. Claro que a qualidade técnica influencia, assim como a psicológica, o empenho (chamado de raça), o jogo coletivo associado ao individual e outros detalhes que surgem para “desvendar” zebras e “justificar” favoritismos, porém não explicam alguns detalhes desta interação constante que é o esporte. Como explicar Pelé e Garrincha, Messi e Maradona, Phelps e Bolt? Os gênios e grandes talentos fogem a explicações e não podem ser enquadrados como “tipicamente nacionais”, pois o “dom” não escolhe território.

Um pensamento sobre “Imprensa e futebol-arte: as narrativas da nossa “essência” futebolística

  1. Precisamos criar uma forma de “desgambiarrizar” diversos aspectos que nos são impostos ao longo dos anos. A escravidão cultural impõe, mas nem sempre as situações ocorrem na devida forma que se pretende. Principalmente no futebol, que não é ciência exata. Fragmentos do 7 x 1 estavam e ainda estão vigentes antes do fato em si. Pouquíssimos analistas, entre eles vários jogadores, mal sucedidos como técnicos, conseguiram visualizar a leitura tática de Ze Ricardo, ao substituir Diego. Acho que não esquecemos o futebol arte, porém acreditar que ele continue a surgir do nada, sem aprimoramento, estudo sério e atualização dos conceitos, será pura ilusão . O trem da história já passou e estamos “parados na esquina”, achando que podemos alcança lo quando bem entendermos.

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