Maria: O que a natureza não dá, o treinamento não empresta

Meu entusiasmo com o tênis foi crescente durante mais de 30 anos. Algumas figuras tiveram uma incidência direta sobre seu crescimento. Creio que uma delas foi Maria Sharapova. Lembro ainda de sua alegria quando bela e jovem ganhou seu primeiro Grand Slam em Wimbledon, 2004. Sempre mostrou uma tremenda garra para superar as trapaças do esporte e creio que também da vida. Aguentou os tratamentos para as lesões e voltou sempre com renovado entusiasmo às quadras.

Diante de uma vida de sacrifício e superação, sua penalização por utilizar uma substância recentemente proibida (Meldonium, dezembro de 2015) me deixou pasmo.

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Maria Sharapova soube nesta semana de sua punição: 2 anos longe das quadras por ter sido flagrada em um exame antidoping durante o Australia Open, em janeiro de 2016

Todo o processo antidoping (proibição, testagem e penalização) se fundamenta em tornar o esporte mais justo, isto é, eliminar aqueles que usam artifícios contra o fair play. A proibição define o artifício. E é artificial o que é proibido. O COI montou um sistema de policiamento internacional para que o esporte seja justo, virtuoso para que prevaleça o mérito. A norma é o jogo limpo do qual estão banidas a simulação e a trapaça. O valor do mérito é central para o credo do COI. A questão sobre o que está sendo considerado como mérito é central, e o uso corrente do mérito, é justo?

Faz tempo que comecei a ter a impressão de que os que participam do controle da dopagem formam uma seita religiosa: a WADA, ramificada em quase todos os países, no nosso, a ABCD com seus agentes. As imagens e a linguagem da página nacional impulsam o terror policial em prol da justiça (veja a página da ABCD antes de continuar, supere o terror de suas imagens). Conheci alguns de seus membros em eventos de esportes e de educação física. Tinham uma vida bastante boa, com viagens e hotéis para participar de eventos de acordos e de reforços para o sentido sagrado das penalizações impostas. Alguns deles tinham milhagem quase milionária ou que assim apareciam. Alguns competiam com suas milhagens.

As penalizações são vistas como sagradas, pois se aplicam em nome da pureza, com grande estardalhaço na mídia. Os jornalistas repetem até o cansaço o credo do COI. Usar uma substância proibida é um crime ou pecado que deve ser penalizado. Temos menos informação sobre os padres pedófilos do que sobre os atletas que estão sendo investigados e julgados por dopagem.

As substâncias proibidas são impuras porque carregam a possibilidade de a) melhorar o desempenho do atleta que as usa ou b) provocar danos a sua saúde. A luta pelo justo limita o axioma de “mais alto, mais rápido e mais forte” às condições da herança natural potenciada pelo treinamento e um estilo de vida adequado em sua pureza. Assim, a superação deve estar fundamentada na natureza do atleta e no treino.  As drogas que imitam as geradas espontaneamente pelo organismo também são proibidas se favorecem o rendimento por meio da produção “artificial”.

A orientação de proibir drogas ajudou a desenvolver um tremendo campo de negócios e de empregos. Emergiu também um submundo de hackers que pesquisam e produzem drogas ou processos que ainda não são proibidos ou que são de difícil detecção. O COI, mediante a WADA, tem pela frente uma inacabável guerra. Os empregos estão garantidos.

Importa destacar que as proibições se baseiam em possibilidade de efeitos ou meramente em atitudes morais. Por exemplo, se considera doping a presença no organismo de determinados índices de álcool. Parece difícil demonstrar que o álcool aumenta o rendimento do atleta. Se assim fosse, a proibição de dirigir sob efeito de algumas copas seria um absurdo. O fumo não está proibido, embora apenas um idiota pensaria em aumentar seu rendimento fumando 30 cigarros por dia, por exemplo, ou então, se fosse fotografado fumando, teria que dar explicações à imprensa esportiva. O mesmo pareceria ocorrer com a maconha, que, entretanto, está proibida. Paira um tom moral, o atleta não pode usar substâncias químicas que os normais podem fazer uso terapêutico ou recreativo a não ser com autorização especial.

A bela Sharapova foi penalizada por usar uma substância de venda livre produzida por um laboratório da Letônia. O produto é de venda livre nos países do leste europeu e usado para melhorar a circulação de pacientes com problemas cardiológicos. Vários atletas do leste europeu foram penalizados pelo uso do produto no contexto geral do que parece ser uma política com endereço prefixado.

Maria reconheceu que há mais de dez anos usava a substância. Os jornalistas logo apontaram falhas no seu depoimento com o objetivo de dizer que ela sabia o que fazia: aumentar seu rendimento. Ou seja, teria pecado conscientemente. O blog de Alexandre Cossenza, “Saque e Voleio”, me parece que foi nessa direção.

O COI sempre teve um ar moralizador. O leitor pode lembrar que em “Carruagens de fogo” os atletas eram proibidos de ter treinador. Um deles, no filme, tem encontros clandestinos com seu treinador, que observa seus desempenhos perdido entre o público. Mais tarde, se concentrou nas substâncias químicas, nas autotransfusões, nos enxertos e creio que hoje o alvo deve ser a modificação genética.  A guerra muda de inimigos, mas continua.

O COI parece pretender que o recorde do atleta resulte de suas aptidões naturais e de sua dedicação ao treino. Seu recorde seria resultado, então, de seu mérito que, para o credo do COI, deve ser visto como resultado do esforço quando, na realidade, poderia ser apenas resultado da sorte na loteria genética presente nas aptidões.  Contudo, sempre se louva ao mérito, à vontade, à dedicação, enfim, ao mérito do herói.  A loteria genética ou desaparece ou apenas está presente e é reconhecida enquanto aptidão no processo seletivo do atleta.

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O biotipo do velocista jamaicano Usain Bolt é uma exceção no meio do atletismo. Sua altura e a largura de sua passada diferem da maioria dos outros atletas contra os quais compete. Mesmo sem o uso de substâncias proibidas pelo COI, suas características físicas não podem ser consideradas uma vantagem que contradiz o equilíbrio de condições pregado no mundo esportivo? Não seria um doping “genético”?

A pergunta que devemos fazer é: Qual seria o mérito de ser sortudo na loteria da combinação genética? Há mérito em ser um sortudo? Há mérito em ganhar os prêmios das loterias? O sortudo na loteria tem algum mérito pessoal? Há alguma justiça em ganhar a loteria? Federer tem algum mérito no fato de estar talhado fisicamente para o tênis? Mais ainda, elas, a sorte e a dedicação, interagem ou estão entrelaçadas: assim, quanto maior aptidão maior facilidade no treino; quanto menor aptidão menor facilidade no treino. Supor que as dimensões não interagem é afirmar uma natureza dual do atleta, por exemplo, física e mental; fisiológica e moral. Tal dualidade pode ser questionada com argumentos de qualidade. O atleta é uma unidade imbrincada entre aptidão e dedicação.

Na vida há atletas com grande resistência, há atletas que produzem resposta ao treinamento altamente superior à de colegas que realizam treinos idênticos e vivem de forma semelhante. O treinamento implica protocolos de estimulação. Contudo, as respostas são particulares e a aptidão mede-se na resposta diferencial positiva. As aptidões naturais podem facilitar a dedicação aos esforços do treinamento e o atleta sortudo pode sentir menos cansaço e dores que os colegas menos dotados. Pode se lesionar com menor frequência e ainda pode ficar menos tempo doente. Parece que no mérito há uma grande quota de sorte que acabamos admirando.

Serena e Vênus Willians parecem que foram favorecidas de forma diferente na loteria genética. Seria Serena mais dedicada aos esforços do treino ou apenas isto resulta de sua sorte na loteria genética? Vênus, uma grande tenista, teria sido desfavorecida pela loteria genética? Se assim for, qual seria o mérito da Serena? Seria apenas mais sortuda do que sua irmã?

Em 1999 Serena ganhou seu primeiro Grand Slam. Nos dois anos seguintes, 2000 e 2001, Vênus ganhou quatro prêmios de Grand Slam. Serena teve um ano maravilhoso, o de 2002, com três prêmios. Vênus conseguiu seu quinto Grand Slam em 2005 e, ao todo, 7. No ano de 2015, Serena, com 21 prêmios de Grand Slam, encabeça a lista mundial do tênis feminino e nada indica que a situação mudará a não ser que o declínio provocado pelo tempo corroa a imensa quota de sorte de Serena, que ganhou até agora 3 vezes mais prêmios de Grand Slam do que sua irmã. A origem genética pode ser a mesma, mas, seleção e combinação fazem a diferença. Com ela deveria ter jogado Wills Moody (1905-1998), com 20 títulos de Grand Slam ganhos ainda na época amadora.  Vênus ficou entre as princesas, Serena se tornou rainha ou, se preferirmos, imperadora.

A história a favor de Serena será resultado de seu esforço e dedicação ou apenas da sorte na loteria genética?

Se o leitor aceitar por um minuto que a loteria genética tem um rol fundamental, terá que deduzir que o discurso moral sobre o mérito pode estar construído sobre bases falsas. Tratar-se-ia de pura sorte. A procura do talento esportivo específico é a prova de que a loteria genética existe. Para investir no esporte competitivo é necessário selecionar os talentos, isto é, aqueles sobre os quais temos algumas indicações de que foram beneficiados na loteria genética.

Se isto assim for, passa a ser quase obrigatório que o esportista com menor sorte genética tente compensar sua desvantagem com recursos que escapam aos marcos do treinamento, da dedicação, do esforço e da garra. Deve introduzir elementos “artificiais” para tentar se aproximar do sortudo genético.  O doping aparece.

Será essa a situação da Sharapova? Talvez sim diante do padrão Serena.

Segundo a teoria do esporte, todos os que entram na competição são iguais (a competição desiguala C. Lévis Straus). Nada mais falso, como sabem os apostadores, e, por isso, o azarão paga muito mais se ganhar. Até no tênis quando um atleta mal situado no ranking ganha do melhor situado falamos que a zebra entrou em quadra.

Se a primeira parte da afirmação do antropólogo francês é uma fantasia, ou seja, os que entram não são iguais, apenas supostos enquanto tais, então o recurso àquilo que pode aumentar o desempenho é uma tentação constante. Talvez uma necessidade. Isto leva na direção do negócio de proibir e de trapacear as proibições. Muitos vivem na triste realidade humana de tentar superar a sorte negativa da loteria genética que pode desigualar antes da competição largar.

A brincadeira leva a afirmar que existem três categorias de competidores em tênis: a dos homens, a das mulheres e a da Serena. Com cinco títulos de Grand Slam, Maria pode se situar na categoria das mulheres ou das princesas. Para entrar na da Serena, terá que fazer algo que a WADA já proibiu ou proibirá?

O COI deveria repensar sua retórica aristocrática sobre o mérito dos atletas. De fato, a imensa maioria treina duro e cumpre com exigências de estilos de vida rigorosos. Contudo, se a loteria genética não dá, o treinamento não empresta.

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