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PIQUET também é brasileiro!

Nas últimas semanas estamos acompanhando uma overdose midiática em torno do ex-piloto Ayrton Senna devido aos vinte anos da sua trágica morte no circuito de Ímola na Itália. Em meio a uma espécie de estado de comoção nacional, programas televisivos, matérias jornalísticas, depoimentos emocionados de diversas personalidades brasileiras e internacionais, além de todos os recursos digitais que nem existiam no longínquo ano de 1994 estão sendo mobilizados para exaltar a memória de um grande esportista brasileiro.

Este fato pode ser relevante para debatermos questões intrínsecas a pesquisa acadêmica e sua relação com os meios de comunicação, sobretudo nos aspectos da idolatria e o papel da construção da Memória pelos jornalistas.

Segundo o historiador Jean Pierre Vernant, os gregos já exaltavam a morte em combate, e o soldado atingia o patamar de herói quando vinha a falecer lutando. Simbolicamente grande parte do elogio público em torno da mítica figura de Senna se deve ao seu óbito nas pistas.

Entretanto, diversos outros fatores contribuem para a perpetuação da idolatria em torno do piloto: a sua inegável capacidade de dirigir um automóvel de Fórmula 1, os três títulos conquistados independentemente das circunstâncias, a imagem de bom moço centrada no elemento “etos” que é repassada para as novas gerações, e a associação do corredor a própria ideia de Nação, mesmo tendo sido um atleta de modalidade individual.

Como os dois primeiros argumentos são inquestionáveis, gostaria de me aprofundar no debate sobre a imagem de Senna e a metáfora da Nação em torno de Ayrton comparando com outro ícone do automobilismo nacional que também foi tricampeão mundial, Nélson Piquet.

Senna sempre foi muito bem assessorado no que diz respeito ao seu marketing pessoal. Rapaz educado, discreto e de “boa família unida”, raramente falava mal de um companheiro de profissão ou se desentendia nas pistas. Mesmo suas desavenças com Prost eram minimizadas e a cordialidade celebrada em diversos momentos nos pódios que se encontravam juntos. Sua imagem é até hoje protegida e reverenciada pelo Instituto que possui seu nome e recebe diversos investimentos privados e outros indevidamente públicos.

Em contrapartida, Piquet nunca se preocupou em agradar a mídia especializada e nem os outros pilotos. Detentor do prêmio “limão” de piloto “mais azedo da Fórmula 1” em algumas ocasiões, se destacava na categoria não apenas pela sua competência na direção, mas pelo seu conhecimento enquanto mecânico. Também veio de família abastada como 99% dos esportistas desta modalidade de elite, porém suas desavenças com o pai, médico que chegou a ser Ministro de Saúde em 1961 e 62 e não queria que ele se dedicasse ao automobilismo, além de outros membros da família são notórias. Com relação aos companheiros de profissão nunca teve “papas na língua”. Diversas frases de efeitos são atribuídas a ele.

Sobre seu principal desafeto, o piloto inglês Nigel Mansell e também sobre Senna fez declarações polêmicas:

“É um idiota veloz”
“Temos uma grande diferença: ele gosta de mulheres feias, eu de mulheres bonitas”.
“Quando eu descobria algum acerto diferente no meu carro (Williams), falava em cima da hora para os engenheiros, assim não dava tempo de copiar para o carro dele”.
“Quase tive um orgasmo, quando vi o Mansell parado” (quando o inglês deixou sua Williams “morrer”), comemorando antecipadamente na última volta do Grande Prêmio do Canadá de 1991. A prova foi vencida por Piquet, que estava em segundo.
“Senna, o melhor piloto? Não, o Prost foi tetracampeão de Fórmula 1”
“Quem é melhor, eu ou o Senna? Eu estou vivo!”

Estas últimas afirmações podem ser consideradas hoje como ultrajantes para grande parte da opinião pública devido à metáfora que é feita entre o piloto e a Nação: Ayrton do Brasil representa simbolicamente uma alusão nacionalista à pátria. Questionar o Ayrton é atingir um símbolo de ufanismo, de reverência identitária, uma “heresia” ao país.

Seus títulos foram conquistados em um momento de grandes transformações democráticas e de um vácuo na idolatria esportiva. A seleção brasileira era questionada devido aos anos sem títulos e a pífia campanha na Copa do Mundo de 1990 quando acabou eliminada pela Argentina. Por muitos domingos a Fórmula 1 foi alçada a condição de paixão nacional e o “bom moço”das pistas se transformou rapidamente em herói com direito a “musiquinha” temática nas vitórias e berros exaltados do locutor/amigo Galvão Bueno associando Ayrton ao próprio país.

Aquele momento da Nação é emblemático. Exaltação cívica com a democracia, a promulgação da Constituição Federal de 1988, o retorno das eleições diretas para presidente, o crescimento do discurso publicitário no país e a presença marcante de Ayrton nesta seara, a ausência de uma renovação de ídolos futebolísticos; Zico e Sócrates, por exemplo, estavam no final de carreira quando Ayrton começava a brilhar. Nenhum esporte coletivo se apresentava como vencedor naquele momento apesar do voleibol estar iniciando sua trajetória hegemônica com a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Barcelona. Enfim a pista estava aberta e Ayrton soube com maestria e uma ótima equipe publicitária acelerar na direção da idolatria.

É claro que isso ocorreu por que havia ressonância na recepção popular e ele era um piloto excepcional. Nenhum ídolo é construído apenas pela imprensa, mas algumas conjunturas históricas são mais propícias para o “enquadramento de memória” conforme conceitua Michael Pollack e vinte anos depois, pode-se perceber claramente o que se escolhe lembrar sobre Ayrton (bondade, coragem, amor à pátria, etc).

Enquanto isso o antipático Piquet durante sua vitoriosa carreira nunca demonstrou inclinação para ser ídolo. Sempre afirmou que corria por dinheiro, fama pelo prazer da velocidade, e não pelas criancinhas do país ou pelos flagelados do Nordeste. Mesmo se tivesse morrido também na curva Tamburello, no acidente que sofreu sete anos antes da morte de Ayrton ou quando treinava em Indianápolis em 1992, provavelmente não estaria midiaticamente no panteão dos heróis nacionais.

Quero esclarecer que este post não tem como objetivo ser contra o Senna ou encerrar uma eterna discussão de botequim sobre quem foi melhor piloto. Só quero lembrar que Piquet também é brasileiro e foi tricampeão de automobilismo.

Quando puxo pela minha memória afetiva, confesso que achava a Fómula 1 muito mais divertida e competitiva na primeira metade dos anos oitenta do que no período posterior de supremacia total dos carros Mclaren e Willians, e que a maior ultrapassagem que assisti foi do próprio Piquet em cima do Senna.

Que os guardiões da Memória de Ayrton perdoem estes sacrilégios!

Piquet 1

 

Mais informações sobre a carreira de Piquet ver http://terceirotempo.bol.uol.com.br/que-fim-levou/nelson-piquet-4275.

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