Em cima da linha

Não foi a primeira vez. Mas quando um massagista entrou em campo para salvar um gol do time adversário, todo mundo quis entender o que estava acontecendo. O fato aconteceu no jogo entre Tupi-MG x Aparecidense-GO, pela segunda fase do Campeonato Brasileiro da Série D de 2013. O time de Minas Gerais precisava de um gol para se classificar para próxima fase e continuar sonhando com o acesso à Série C. O empate em 2×2 dava a classificação ao time que, no nome, homenageia a santa padroeira do Brasil.

Na súmula da partida, o árbitro Arilson Bispo da Anunciação resumiu assim o ocorrido:

O sr. Romildo Fonseca da Silva, massagista desta equipe, ao retornar ao banco de reservas por trás da meta defendida por sua equipe, adentrou ao campo de jogo e chutou a bola que iria entrar na meta, após ser chutada por um atacante da equipe do Tupi Foot Ball Club. Imediatamente, o sr. Romildo Fonseca da Silva correu ao seu vestiário, sendo perseguido por alguns atletas do Tupi F. C. e algumas pessoas que estavam próximas, os quais foram contidos pelo policiamento. Tal fato ocorreu aos 44 minutos do 2° tempo. A partida permaneceu paralisada por 15 minutos. Logo após, foi reiniciada conforme as regras do jogo e terminou normalmente. [Fonte: cbf.com.br]

O fato ganhou repercussão nacional pelo seu caráter inusitado. No entanto, a abordagem excessivamente bem-humorada, e porque não dizer descompromissada, de alguns dos principais veículos de imprensa do país, desagradou torcedores e até jogadores da equipe do Tupi.

Os moralistas de plantão, bradavam que um acontecimento deste era inadmissível num país que quer sediar uma Copa do Mundo. Muitos exaltados tomaram a conduta momentânea de um individuo como síntese da moral praticada no nosso cotidiano. Não se espera que a imprensa esportiva, ainda mais a televisiva, produza um tratado sobre ética no esporte. No entanto, o excesso de risadas também não combinou com o jornalismo (ver o exemplo abaixo).

 

Para muita gente, futebol é coisa séria, mesmo que seja divertida. Imagine se isso tudo tivesse acontecido em jogo da Copa Libertadores de América. Suponha que um massagista venezuelano entre em campo para a salvar o time local de um gol que seria marcado por uma grande equipe brasileira. As risadas certamente dariam lugar a um discurso preconceituoso. Nós somos centro e eles periferia.

Como quase tudo no mundo atual, a polêmica foi resolvida nos tribunais. Após algumas semanas, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) decidiu eliminar o time goiano e permitiu que o Tupi avançasse. Na prática, foi assegurado o resultado que seria concretizado não fosse a intromissão do massagista. O Tupi segue na tentativa de voltar à Terceira Divisão do futebol brasileiro. A Aparecidense desmonta seu Departamento de Futebol, pelo menos por alguns meses.

Devem existir inúmeras lições para se tirar deste caso. Mas a questão fundamental é que foi preciso uma interferência externa para a resolução da questão. Jogadores e arbitragem não conseguiram sair do campo com o problema resolvido. Para piorar, alguns atletas goianos deixaram o gramado comemorando a classificação. Nunca se falou tanto em Fair Play. Certamente, durante a partida, várias bolas foram devolvidas para o time adversário após algum jogador precisar de atendimento médico. Isso é fácil. No entanto, no momento em que realmente é necessário jogar limpo, a opção é pela decisão pessoalmente mais vantajosa.

Mas não são apenas os jogadores e imprensa nacional que se esquecem de jogar limpo. De acordo com a nossa conveniência, quase sempre nos esquecemos de enxergar a dor do outro na ocasião em que somos beneficiados.

Nascido em Juiz de Fora, terra do Tupi, cresci ouvindo uma fantástica história de amor pelo clube da cidade. Moacyr Toledo foi torcedor, um dos principais jogadores da história do clube e, mesmo depois de parar de jogar, continuou exercendo diferentes funções na equipe. Os gols que marcou na década de 1960 são sempre lembrados. Mas a façanha impossível de ser esquecida se refere a um episódio ocorrido após ele pendurar as chuteiras.

Sempre ouvi os mais velhos contarem o que aquele senhor havia feito. Impressionava-me com a coragem e a bravura de um homem que faria tudo pelo seu clube. Era um herói para a torcida do Tupi. Um exemplo de uma época em que o futebol se jogava apenas com coração. Um homem que encarou sozinho um adversário mais poderoso só para manter o Galo Carijó no local de direito. O fato foi relembrado por ele, em 2011, em uma entrevista para o repórter Fabrício Werneck, da afiliada da Rede Globo em Juiz de Fora:

Qual foi o jogo mais marcante da sua carreira no Tupi? – Marcante foi esse jogo que nós estávamos jogando contra o Atlético-MG, e eu era administrador do estádio. É um episódio que bem poucas pessoas vão lembrar. Eu estava como administrador, estava atrás do gol do Tupi, e o time precisava pelo menos empatar com o Atlético-MG, porque, senão, estava rebaixado. O Tupi estava ganhando de 2 a 0, o juiz expulsou três jogadores nossos e fizeram 2 a 2. No fim, Éder entrou sozinho pra fazer um gol, passou pelo goleiro e eu, essa foi a maior partida minha, porque eu não tava jogando nem nada, eu só entrei, tirei a bola dele. Deu a maior confusão, e o Tupi não foi rebaixado.

Sempre achei essa história divertida. Mas agora ela deixou de ser. Consigo enxergar que além de um massagista (ou administrador de estádio) herói há, do outro lado, um atacante que precisa fazer o gol. Estabelecer nossa ética de acordo com a sua necessidade de marcar ou evitar um gol é algo que fazemos diariamente. E, mesmo cometendo deslizes, o que não devemos, em hipótese alguma, é esquecer propositalmente de circunstâncias em que tiramos a bola em cima da linha, mesmo sem estar jogando. Procure o seu. Será que você também não se vangloria de algum gol irregular?

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