Dois textos

Meu texto estava praticamente pronto. Nele eu mostrava grande preocupação por ter percebido que gosto cada vez menos de futebol. Aquela paixão da infância, que virou loucura da adolescência, estava se transformando num namoro sem graça. Eu comprovava, com bons argumentos, que brasileiro gosta mesmo é de novela e que futebol é um vício de poucos.

Um dos meus argumentos era a minha falta de disposição para acompanhar jogos de outros times brasileiros, de campeonatos internacionais e até do meu clube do coração. Na realidade, talvez eu até assista a mais jogos do que antigamente. Mas a questão é que ver o jogo não necessariamente significa torcer por alguma coisa ou se envolver com a partida. Reparei que fico na frente da televisão olhando a bola rolar e sem a mesma tensão e atenção de outrora. Na maioria das vezes, meu olho fica mais tempo grudado no celular do que fixo na TV. Isso nunca foi assim. As inúteis atualizações das redes sociais dos meus amigos desocupados nunca foram mais importantes que os acréscimos daquele zero-a-zero sem graça. Tudo bem que quando Valdir Bigode* era “o cara” nem o Orkut** existia. No entanto, isso é outra história.

Mas pode ser pior. E meu texto provava isso. Afinal, não é correto assistir a um jogo do seu time lendo o jornal de domingo. Aquele artigo do décimo terceiro caderno não poderia te envolver mais que a correria atabalhoada do Éder Luís. Mas era isso que estava acontecendo. No máximo uma olhadinha por cima do jornal quando o narrador gritasse que Carlos Alberto desferiu mais uma cotovelada ou perdeu mais um gol feito.

E se engana quem pensa que a minha reflexão estava calcada apenas no sentimentalismo barato. Havia muito de racionalidade. Números deixavam claro como a média de público nos estádios brasileiros é pequena (ainda mais se comparada com a de outros países). Outros números mostravam como a audiência da novela costuma ser maior que a do futebol. Por fim, o argumento final se baseava nas denúncias de corrupção que ameaçam os principais cartolas brasileiros, a desorganização dos Campeonatos Estaduais, a falta de comprometimento dos atletas e as dancinhas ridículas a cada gol comemorado. Qualquer um ficaria convencido que futebol é uma grande bobagem e que quem sempre esteve certo foi meu pai quando me repreendia em razão das revoltas juvenis após mais uma “derrota importante”***.

Quem teve paciência de chegar até aqui certamente está se perguntando: mas qual o motivo de eu estar lendo este texto e não aquele? A resposta é simples. Depois de Dakson cruzar e Romário**** empatar o jogo contra o Fluminense eu fui até a janela e gritei alto, comemorando a classificação. No caminho joguei o jornal para o alto, pisei no celular e procurei minha camisa do Vasco (que já é antiga, afinal, um dos argumentos do outro texto eram os preços abusivos praticados nos estádios e nas vendas de produtos oficiais).

Esqueci a racionalidade. Me diverti, ri, brinquei e depois perdi. Sem trauma. Talvez essa seja uma síntese da vida adulta. Ela é formada quase sempre por um marasmo entediante e, por isso, aproveitar os raros momentos de loucura juvenil torna-se fundamental para ter força e voltar à rotina de obrigações. No entanto, isso não deve ser desculpa para um distanciamento acrítico. O futebol brasileiro segue um caminho preocupante e passará nos próximos anos por algumas encruzilhadas decisivas. Acompanhá-lo com frieza e distanciamento não fará sentido, mas torcer com a ingenuidade de uma criança também não vai ajudar em nada. Assim como a defesa do Vasco, precisamos encontrar o equilíbrio.

Glossário
*Valdir era um artilheiro que fez sucesso dentro da pequena área marcando gols contra os adversários do Vasco. Bigode são os pelos localizados entre o nariz e a boca do homem. Antigamente, homens faziam toda a barba, mas se esqueciam daquela região.
** Orkut era uma rede social que tinha milhões de fóruns, chamados de comunidades. Ali era a plataforma ideal para que, quando seu time ganhasse, você fizesse gozações com o seu adversário. Quando o nosso time perdia não era possível fazer login.
***Derrota importante não necessariamente ocorre em uma final. E o famoso (sic) gol do Pet não se enquadra nesta categoria uma vez que naquela ocasião a minha preocupação era com o jogo contra o Boca Juniors, pela Libertadores, no meio de semana seguinte.
****Este Romário não é deputado federal, não recebe salários atrasados de Vasco, Flamengo e Unimed, e também não tem peito para criticar a CBF.

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