Autores, artistas e ídolos: algumas reflexões

Dentro das leituras para redação da minha monografia no já longíquo fim de 2011, havia me deparado com gratas surpresas. Uma delas foi o livro “O show do eu: a intimidade como espetáculo” de Paula Sibilia (2008). Meu tema de pesquisa monográfica não estava ligado ao esporte, mas, inesperadamente, consegui extrair desse livro alguns questionamentos interessantes para pensar o futebol moderno e o culto midiático a alguns atletas.

No capítulo cinco desse livro, Sibilia aborda a crescente importância do artista-autor em relação a sua própria obra. Ela defende que em várias esferas sociais a personalidade de um artista, ou seja, o personagem criado em torno dele, se torna maior do que seus feitos e suas obras. Como exemplo, cita Virginia Woolf, a qual muitos conhecem como uma personagem do filme “As horas” (interpretada por Nicole Kidman), mas não por seu legado artístico. Isso me levou a pensar em algumas outras coisas, como a noção de artista/autor e artesão/narrador, também esmiuçadas por Sibilia nesse capítulo. Ao final desse texto, traço o paralelo reflexivo com o futebol.

Foucault afirma que nem sempre a função “autor” foi prezada da forma como o é atualmente. Essa noção só adquiriu força no século XVIII. Antes, não era raro encontrarmos obras anônimas ou de produção coletiva. Walter Benjamim, por sua vez, fala da morte do narrador, que para ele tinha características típicas de um artesão. Isto é, utiliza-se de um trabalho manual para criar uma obra de arte.

Na Idade Média não se podia falar ainda em personalidade estética. O artista era um copista, uma vez que mimetizava aquilo que via na natureza, acrescentando quase nenhuma distorção subjetiva (quanto menos, melhor era a obra). Sendo a obra maior que o artista nesse sentido, muitas delas não possuíam autores conhecidos. Na Antiguidade, esse fazer-artístico também era assim: “copiar a realidade da forma mais fiel possível e, com isso, iludir os sentidos” (Sibilia, 2008, p.153). Esses, aliás, seriam artesãos, e não artistas, para Sibilia. O artista seria alguém que é, enquanto o artesão seria alguém que faz. Distinção que pode ser feita entre o saber técnico (saber fazer) e o saber científico (saber saber).

Nos séculos XV e XVI, o artista começar a imprimir subjetividade em suas obras, mas ainda não se reconhece o gênio artístico, ou seja, a capacidade de uma obra refletir os modos de ser e a essência do artista (características típicas da modernidade por vir).

Com o Romantismo nos séculos na primeira metade do século XIX, essa noção começa a mudar. O artista vai se tornar, em alguns casos, maior que sua própria obra. Ele passa a retratar o mundo a partir de sua natureza interior, ou seja, sua interpretação do mundo não como ele é objetivamente, mas como ele parece ser para o seu “eu”. É aqui que começa a surgir também a noção de autor, com a implicação dos direitos dele sobre a sua obra e a visão desta como uma mercadoria (vendável e controlável legalmente). Os autores também se tornam maiores que seus livros, vide o mote da Feira Literária de Paraty, a saber, atrair o público por meio dos autores consagrados e dos homenageados que participam do evento (em saraus, debates, leitura de trechos de suas obras).

Na contemporaneidade, podemos associar esse status do autor como grife a uma crescente importância das marcas em todos os setores da sociedade. Compra-se um aparelho eletrônico pelo grifo que uma grande marca o atribui (por exemplo, você, por um acaso, faz maiores ponderações na decisão entre comprar um Ipad da Apple ou um Kyros da Coby?), e assim o é com muitas outras coisas, como produtos alimentícios, de beleza, roupas. Da mesma forma, muitas vezes, opta-se por ler um livro apenas por se esperar que o autor consagrado repita naquele romance a mesma qualidade que marcou a construção de seu nome como expoente literário. Não se avalia a crítica sobre aquele livro em específico, mas apenas o fato de o nome do autor ser aclamado ou não. Isso, inevitavelmente, cria uma ditadura do mais conhecido, uma vez que reduz-se a chance de aparecimento de novos autores, bem como de artistas, produtos, roupas, empresas…

Não teríamos alguns exemplos no futebol que exemplificariam muito bem esse dilema da pós-modernidade?! Neymar, por exemplo. O número de brasileiros que o conhecem por seus lances fantásticos e gols seria maior do aqueles que o recordam de suas propagandas e aparições na mídia? Difícil responder, mas apostaria que muito mais pessoas do que imaginamos se enquadrariam na segunda hipótese. Peguemos Pelé agora. Messi, o craque argentino, afirmou desconhecer as jogadas e a habilidade de Pelé. Este, por sua vez, tratou de enviar logo um DVD do filme “Pelé Eterno” para que Messi pudesse ver o quão genial ele, o Rei do Futebol, havia sido dentro das quatro linhas. Fica a dúvida: qual retrato mental Messi fará após ver o filme – o do Pelé jogador ou do Pelé personagem do filme?

O que proponho é uma reflexão sobre os limites da adoração ao jogador, o artista da bola, em detrimento aos seus verdadeiros feitos dentro de campo. Isto é, o quanto a construção midiática que é feita dele se mimetiza ou não em suas atuações dentro de campo e até que ponto essa construção se reflete positiva ou negativamente em sua carreira.

Outro ponto é se realmente o futebol pode ser tomado pelo mesmo viés analítico que as outras formas artísticas quando avaliamos essa questão aurática da obra e de seu criador. Acredito que sim, mas com algumas ressalvas. Diferentemente, de outras formas de arte, como o teatro e a pintura por exemplo, o futebol contemporâneo está intrinsecamente ligado aos meios de comunicação – depende deles para conquistar novos adeptos, ganhar receitas e vender publicidade. Dito isso, é complicado impor limites à exposição dos atletas, visto que eles são parte do pacote vendido pelos clubes à mídia. Por outro lado, museus ou galerias de arte (um paralelo ao que os clubes representam para os atletas) não estão tão intrinsecamente ligados ao MCM. Dentro desse debate, o excelente livro Elogio da Beleza Atlética do pensador alemã Hans Ulrich Gumbrecht nos ajuda a elucidar o tipo belo e sublime peculiar ao esporte.

Paula Sibilia, no livro citado logo no início desse post, expressa bem essas nossas questões, ainda que não se referindo especificamente ao futebol:

Então, por que reaparecem agora todos estes artistas e intelectuais, convertidos em protagonistas de espetáculos audiovisuais destinados ao grande público? Há uma resposta simples: porque eles foram extraordinários. Mas por que o foram? Eis a única resposta possível: porque criaram magníficas obras. (grifos nossos)

A extraordinariedade do atleta foi destacada por Helal em seu último post. É ela que fornece subsídios para o processo de idolatria executado pela mídia. Esta não trabalho no vácuo, mas necessita de atos geniais para legitimar um atleta ou qualquer outra figura pública.

Referências

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2008.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da Beleza Atlética. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

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