Neocolonialismo esportivo

A cena ocorreu em uma terça feira calorenta na cidade do Rio de Janeiro, mas não foi tão diferente do que ocorreu em outros lugares de Pindorama.

O professor avisa aos seus alunos, ávidos por beber da fonte de sua sabedoria:

– Hoje teremos que encerrar nossa aula mais cedo, pois vocês sabem que temos uma obrigação religiosa às três e quarenta e cinco.

A aula, que, reza o cronograma universitário, deveria acabar às 16 hs, foi encerrada às 15:30, para que o mestre e seus discípulos pudessem dedicar-se ao tal compromisso.

O evento em questão era uma partida profissional de futebol association, que foi transmitida pela mídia. Bom, imagina-se que isso não é fato novo. Jogos de futebol são eventos sociais que mobilizam os veículos midiáticos e a sociedade. As Copas do Mundo são o exemplo máximo dessa sujeição das tarefas cotidianas a um simples jogo. Parar a economia, as atividades, em um dia normal de produção é coisa corriqueira. O fato em questão é ‘novo’, apenas em um único ponto: Não era a seleção brasileira que estava em campo. Nem era a final do campeonato brasileiro (os dois únicos eventos, em meu modesto entendimento, capazes de promover tal entusiasmo afetivo e comoção).

Nas ruas, podia-se ver, nos locais onde haviam televisores ligados, todos eles sintonizados na TV Globo, canal aberto que transmitiu a partida (estranhamente, já que não transmite os demais matches do torneio). Grupos de indivíduos vidrados, conectados à tela, como se os times cariocas pelos quais têm simpatia estivessem jogando. A vasta maioria era identificável: jovens do sexo masculino. Nos bares, mesmo os garçons não tinham muito trabalho, a não ser o de manter os copos de cerveja cheios. Sobrava tempo até para esses serviçais participarem, assistindo e comentando os lances da partida.

Era a tarde de terça-feira, 24/04/2012, e o jogo nas teletelas (Orwel, 1948), que captavam a atenção e tanto mobilizou esses brasileiros, era Futbol Club Barcelona  X Chelsea Football Club. Os dois times, um espanhol e outro inglês, duelavam pela segunda partida da semifinal da UEFA Champions League (Liga dos Campeões da Europa).

O que me chamou a atenção é que não se tratava de clubes brasileiros, a disputa em questão não tinha importância alguma para os times tupiniquins (salvo a rara exceção de que um clube brasileiro vença a Copa Libertadores da América, e venha, após mais alguns desafios, a disputar a final do mundial de clubes).

Porque essa assistência, essa comoção, em detrimento de atividades produtivas ordinárias, em pleno horário comercial? Euclides da Cunha disse certa vez, que vivemos “parasitariamente, à beira do atlântico”[1]. Talvez seja isso.

Alguns dizem que tal sedução ocorreu em virtude de estar envolvido o Barcelona, atual campeão do mundo, tendo em seu elenco o jogador argentino Lionel Messi, escolhido o melhor jogador do mundo. Essa conjunção de ‘melhores’ não veio a se confirmar, pois o tal Barcelona foi eliminado, ironicamente após Messi desperdiçar uma cobrança de pênalti. No campeonato espanhol as coisas também não iam nada bem para esse ‘supertime’, que via o rival Real Madrid se distanciando na ponta da tabela.

Falando em resultados, aliás, os barcelonenses não tiveram tanto êxito: vices no campeonato espanhol e vices da Copa do Rei (ambas vencidas pelo Real Madrid).

O disparate maior foi ler a coluna de Benjamim Back no jornal Lance do dia 10/05, intitulada “Até nisso eles são melhores”, em que o colunista baba pelo Barcelona, chegando ao cúmulo de dizer que foi “O melhor time que já viu jogar na vida”.

Eu apresentaria ao colunista a lista preparada por nosso colega Álvaro, em seu texto “Comparar o incomparável“. Não achei a coluna em questão em versão digital, mas o leitor pode acessar aqui e ver o nível da paixão do colunista pelo Barcelona.

No dia seguinte ao jogo em que o super-maravilhoso imbatível-oitava maravilha do mundo, Barcelona foi eliminado, acontecia a outra semifinal do torneio, e novamente fui às ruas para conferir e comparar a assistência. Realmente a atração era bem menor. Apesar de haver ainda muitos televisores ligados na partida (que, parece, não foi exibida na TV Globo), não havia tantos indivíduos assistindo, compenetrados como na véspera.

Se a fixação da mídia e de parte do público é por ser o Barcelona um “supertime”, esse clamor se daria apenas neste momento ‘mágico’ da equipe azul-grená. Já, se, por outro lado, todas as edições da competição europeia seduzirem dessa forma os brasileiros, é a confirmação de nossa “síndrome de vira-latas” (Mário Filho).

Que os jovens sejam o grupo majoritário é compreensível: não tiveram a chance de ver os grandes times brasileiros jogarem (caso do nobre colunista do Lance, que pela foto não parece ser mais tão jovem…). Além disso, eles, jovens, são o principal grupo consumidor de mídia esportiva, a que mais interessa promover esse tipo de consumo. Como se não bastasse, os jovens de países periféricos, com reduzidos horizontes, enxergam no futebol uma possibilidade de ascensão social. Não seria absurdo dizer que, ao ver jogadores brasileiros jogando nas competições europeias, projetam nesses atletas seus anseios quanto a um futuro melhor para si próprios.

Fiquei imaginando uma pesquisa contrária: ir às ruas de alguma capital europeia em dia de semifinal da Libertadores da América, e verificar se os europeus estariam assistindo aos jogos de nossos clubes. Será que as redes de TV aberta de lá transmitem a semifinal da Libertadores?

Pesquisando sobre esse tema, me deparei, em feliz coincidência, ao texto de nosso colega e amigo Victor Melo: “Esporte, colonialismo e pós-colonialismo: o caso de Cabo Verde – um debate a partir de Fintar o Destino (1998)”.Uma ótima reflexão sobre o tema. Recomendo a leitura. O texto está disponível aqui.

Os europeus são os melhores? Será? Então por que os “craques” de seus times são estrangeiros? Por que o mundial interclubes não é sempre vencido pelos europeus? Por que o país que mais venceu a Copa do Mundo é o Brasil, e não um europeu?

O que eles, europeus, podem ter mais que nosotros é dinheiro. Nada mais. Dinheiro esse que, aliás, foi roubado da América entre os séculos XVI e XIX.

Lembro-me dos versos do poeta, que, longe de sua pátria, escreveu:

“as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”

(Gonçalves Dias, Canção do Exílio, escrita em Coimbra, Portugal, Julho de 1843)


[1]  Os Sertões, 1902. Nota preliminar. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b171.pdf

2 pensamentos sobre “Neocolonialismo esportivo

  1. Esse Benjamim Back é tosco demais. Não dá pra levar a sério um colunista que dá língua (han?) para seus leitores.

  2. A maioria deles (comentaristas) só fala merda. Poucos, como o falecido Luis Mendes e o Gérson Canhota, se salvam.

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