“Homo Ludens” ou a busca da competição na midiatização da Travessia dos Fortes?

Minha participação na última edição da Travessia dos Fortes me levou a reflexões sobre as transformações ocorridas no evento ao longo dos últimos anos e a possível influência da mídia no comportamento dos participantes em competições que reúnem um pequeno número de atletas (grupo de elite) e inúmeros amadores praticantes do esporte.

A prova, que completou 10 edições, era organizada no início apenas pelo Exército brasileiro e a CBDA (Confereção Brasileira de Esportes Aquáticos) e anteriormente era realizada no mês de Setembro. O objetivo era estimular jovens do exército e nadadores a praticarem a atividade em águas abertas e completarem o percurso de aproximadamente 3.600 metros no menor tempo possível.

Como morador do bairro e apaixonado pelo mar sempre nadei nas praias de  Copacabana e Ipanema pelo mero prazer de sentir o corpo deslizar por águas salgadas e ter um contato lúdico com a imponência do oceano e a beleza das praias da zona sul carioca.  Apesar de durante a semana nadar com mais frequência em piscinas, sobretudo nos domingos ou feriados busco até hoje dar umas braçadas no mar perfazendo pelo menos dois quilômetros antes de curtir os demais prazeres possíveis ao escolher a praia como espaço de lazer.

Participo do evento “Travessia dos Fortes” desde a edição de 2003 que acredito  foi a segunda prova. A única edição que não consegui me inscrever foi a do ano passado, devido justamente a um dos problemas gerados pela espetacularização do evento. Com a limitação em 2.500 participantes e o aumento da demanda em competir, em menos de 2 horas as incrições on-line encerraram-se e eu, que estava trabalhando no momento de início das vendas, perdi a chance. Este ano só consegui nadar pois gentilmente o Professor Mario da equipe “O Treino” me colocou na sua equipe e, mesmo tendo enormes dificuldades com o site da prova, conseguiu inscrever todos os seus alunos. Sobre a preparação para a prova é legal ver essa matéria do SPORTV.

Nas primeiras provas que fiz, sinto que predominava entre os participantes que não eram da elite uma atmosfera diferente. A paixão pelo mar, o sentimento do desafio de uma maratona aquática, com suas belezas e obstáculos, o prazer de parar por alguns segundos e olhar como o Copacabana Palace é lindo lá do fundo do oceano, observar a Pedra do Leme que se agiganta à medida que nossos braços se esforçam, a cumplicidade de olhar para o lado e ver um enxame de tocas coloridas se deslocando pela maré. Este prazer lúdico, que sempre me motivou a participar desta travessia e de diversas outras que fiz ao longo de quase 10 anos, parecia ser a grande inspiração da maior parte dos nadadores amadores. Parodiando a clássica obra filosófica de Johan Huizinga Homo Ludens: A braçada como elemento da cultura carioca reinava no Domingão da Travessia dos Fortes.

Lembro inclusive da prova de 2004 – com a temperatura da água estava em torno de 14 graus e muitas pessoas abandonando com hipotermia, já que não se podia nadar de roupa de borracha -, em que o prazer cedeu espaço a um desejo de superação, com o corpo começando a esquentar somente em frente ao Hotel Othon, e o esforço para conseguir chegar no final com um sentimento de vitória inefável.

Nesta prova, um fato me chamou atenção. Na fila para buscar a camisa na chegada – nesta época você só recebia esta lembrança junto com a medalha se completasse a prova -, dois amigos “marombados” conversavam:

– E aí,muito frio, né?! Foi difícil chegar.

O outro que era ainda mais forte confessou.

– Não deu, não. Sai na altura da Siqueira Campos e vim correndo para buscar a camisa para poder ir na Academia amanhã.

Pensei comigo, que babaca. Se não conseguiu aguentar, volta para casa sem a camisa. E, pela primeira vez, percebi a força simbólica do evento. O fortão ia tirar onda na academia com as garotas. Tenho de admitir que no outro dia usei a camisa para ir trabalhar, dar minhas aulas nas escolas, fato que continuo fazendo sempre que completo mais uma travessia.

Todavia, a partir de uns anos para cá, percebo que além da “onda” de completar a prova, o espírito de competição, mesmo entre os amadores, vem aumentando. A partir do momento que a prova passou a fazer parte do programa de esportes dominical da Rede Globo, cresceu o número de interessados em participar, criou-se uma grande raia que melhora a visualização para a televisão, mas que na minha opinião atrapalha a dispersão dos atletas, e o clima na água está menos amistoso.

A largada nessas provas sempre é disputada e pode ocorrer pequenos acidentes. É um momento de tensão e expectativa. No livro Travessias – Natação em águas abertas de Luiz Sodré o autor descreve este momento :

A largada em si é espetacular. Todos correndo afoitamente para o mar, mergulhando e iniciando as primeiras centenas de metros em ritmo vigoroso, para fugir da confusão e embolação da primeira boia, procurando logo espaço livre para desenvolver o ritmo planejado para a prova.

Travessia dos Fortes 2011. Foto: Satiro Sodré/Divulgação AGIF

Mesmo sendo comum ocorrerem transtornos na largada, este ano fiquei muito impressionado com o ambiente. Uma fileira de soldados, separando os competidores amadores do pelotão de elite, chegava a ser forçada por alguns pseudo-atletas mais exaltados. A tensão pelo estrondoso tiro de canhão que marca o início da prova era visível nos rostos de muitos participantes. A espera do sinal da televisão para começar, pois agora a prova tem de iniciar depois que o bonecão do Tande filma os “papagaios de pirata” em delírio e quando termina os comerciais, era para mim entediante.

Deixei que muitos saíssem na frente e mesmo assim quando mergulhei tomei uma cotovelada e em poucos minutos outro nadador puxou minha perna duas vezes com força, fato que não me recordo de ter ocorrido anteriormente. Sobre os problemas que podem ocorrer durante a prova e o prazer e adrenalina que os competidores sentem, ver a matéria feita por um jornalista que participa de diversas maratonas aquáticas.

A própria prova foi mais tensa para mim. Demorei para relaxar e curtir o prazer de estar em contato com o mar, apesar das ótimas condições da água e do belo dia de sol. Me lembro de ter parado apenas uma vez para olhar o visual e, pela primeira vez, apesar de não estar treinando muito devido as diversas aulas e as tarefas acadêmicas do doutorado, confesso que estava pensando no tempo que ia fazer e, no final, estava feliz por completar mais uma travessia, porém um tanto quanto decepcionado por ter feito aproximadamente em 1:10 minutos extra-oficialmente. O tempo marcado pela organização é bem superior, visto que ao chegar junto com a galera mediana enfrentamos uma longa fila para entregar o chip e estabelecer nossa marca.

Na semana posterior à prova, fiquei me questionando. Por que será que agora estou começando a me preocupar não apenas em completar a prova e desfrutar os prazeres lúdicos de uma travessia aquática? Será o afloramento de um instinto de competição intrínseco ao ser humano ou ao próprio sistema em que vivemos? Ou a comparação com o tempo bem inferior de amigos de Copa como o Tiago Martins e o Guilherme Van der Laars, que, por estarem se dedicando e treinando bastante, conseguem fazer em menos de 1 hora? E qual o papel da espetacularização midiática neste meu sentimento?

Não tenho ainda respostas para as perguntas levantadas acima, só sei que quero continuar desfrutando o caráter lúdico destas provas, mas no momento também pretendo competir contra o tempo.

E o objetivo deste post também não é condenar a transmissão de trechos da prova pela televisão. Não tenho uma opinião formada sobre os efeitos gerados. Apenas quero instigar uma reflexão sobre as consequências positivas e negativas do papel da mídia para o evento, seus participantes e a própria história desta tradicional travessia aquática carioca.

Mas depois que de todo se fartou,

O pó que tem no mar a si recolhe,

E pelo céu chovendo enfim voou,

Porque coa água a jacente água molhe:

As ondas torna as ondas que tomou,

Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.

Vejam agora os sábios na escritura,

Que segredos são estes de Natura.

Luís de Camões. “Os Lusíadas. Canto V, 22”

5 pensamentos sobre ““Homo Ludens” ou a busca da competição na midiatização da Travessia dos Fortes?

  1. Bom texto, meio longo, como a própria prática das travessias oceânicas, Sonho em chegar o dia em que lhe verei (in loco, claro) atravessando o Canal da Mancha.
    Identifico na sua narrativa, dois fatores pincipais para o acirramento entre os ‘atletas’. Ambos os fatores incidentes e complementares:
    O Primeiro, e mais contundente é a própria natureza humana, competitiva e baseada socialmente na opinião alheia. Isso fica evidente no relato do fortão da camisa sem o mérito. Ele possuiu o signo (camisa). O fato de se mostrar, da opinião do outro é o importante.
    Aí entra o segundo fator: Mídia. A transmissão televisiva traz a visibilidade que a natureza humana, principalmente numa sociedade imagética como a atual, vislumbra, almeja.
    Não vou me alongar mais, Gostaria de ler os comentários dos colegas.

  2. É inerente ao homem (pelo menos, aquele do século XX em diante) esse desejo de se mostrar. Alguns pensadores dizem que na contemporaneidade construímos nossa subjetividade a partir do olhar do outro, isto é, nos exibindo em blogs, webcams, na TV (para os mais afortunados) e por aí vai. Nada mais normal que a competitividade e o exibicionismo aflorarem com o início da cobertura televisiva à Travessia dos Fortes

  3. Eu que não tô nem aí pra opinião alheia… Como diz o grande filósofo congressista Romário: “Quem tem que ter imagem boa é televisão! “.
    Que se ferre o que acham de mim…

  4. Caro Alvaro: gostei muito de seu texto, eu ainda uso palavras antigas. Você deve saber que já faz anos nas competições escolares todos os participantes recebem medalha. a conduta foi motivada por críticas à competição que desiguala ou distingue. A conduta talvez tenha se generalizado e pouco importa se conclui ou não a prova, todos tem direito ao testemunho de ter participado, no caso, a camiseta. Peço para todos verem a propaganda da APAE, nela se diz que toda pessoa foi feita para “brilhar” ou tem o direito a isso. Além de falso contribui para que se oculte que a prova não foi concluída e, talvez, para o imaginário do “brilhei” por simples aparição na torcida, por enviar um sorriso ou por qualquer outro motivo. A propagnada de APAE me preocupa, será que agora não podemos ser pessoas simples e que não brilham?

  5. Pegando carona no debate, também tentei não me importar em ter que brilhar nos vários circuitos adidas de que participei. Como amadora, não queria marcar o tempo da corrida, nem me preocupar em bater marcas, mas não consegui. E assim, contemplar o deslumbrante aterro do flamengo passou a não ter o mesmo prazer de antes. Boas observações, Alvaro.

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