Para mim, chega de touradas

Saio de um “Tablao Flamenco” em Sevilla, cidade para andar, ‘bicicletear”, ver, ouvir e degustar seus sólidos e líquidos. As bicicletas podem ser alugadas, via compra de um cartão, e deixadas em vários pontos da cidade. Depois se pega outra. Parece uma excelente idéia. Os andaluzes, como aprendi na literatura criollista argentina e no tango, suprimem as consoantes da última sílaba. “Tablao” ao invés de “tablado”.

Vejo ao lado grande movimento de pessoas. É a Praça de Touros e me informam que terá uma “novillada” com animais grandes e fortes, quase touros, na qual participarão três novos toureiros saídos de um concurso. As filas para comprar ingressos, nas “taquillas”, é longa e agitada. Me resigno, e como turista bem comportado, compro dois ingressos de um revendedor, ao dobro de seu preço normal, porém bem localizadas, segunda fileira. Em moeda nossa, pago 30 reais por cada ingresso. Ou seja, 15 pela comodidade de não enfrentar a fila e da tensão cognitiva de não saber que localização comprar. O bom do negócio é que ainda em touradas os lugares são numerados.

Apresentação dos três toureiros. Fanfarras, rebuliço e entra o primeiro touro. Animado, negro lustroso, ágil e decidido. Sobressaem as duas ou três bandarilhas cravadas no seu dorso. O touro sangra na areia. As bandarilhas parecem destinadas a debilitar o animal, porem, meu vizinho, me diz que servem para impedir que o coração do animal exploda de excitação. Em outras palavras, se trataria de uma sangria protetora.

Lá vai o toureiro com sua capa e realiza alguns passes. Logo, o touro manda o toureiro na areia e tenta meter seus cornos carne adentro. Saem os assistentes e distraem o touro. O toureiro se reanima e rearma. Nova embestada do touro e o corpo elegante do toureiro roda pela areia. Nova distração do touro e volta o toureiro que pega a espada, suspeito que diante de um novilho com pontaria tão boa. A cena se repete: agora toureiro para um lado e espada para o outro. Eu grito que o touro já ganhou. As miradas em volta me inibem. O toureiro de novo em ação acaba enfiando a espada no touro ou novilho que não está disposto a morrer, mas que já não se levanta. Morte final pelo especialista da faca. Fui embora da tourada, mais indignado que horrorizado, sem esperar os combates faltantes.

Podemos considerar tourada um esporte? Muitos a criticam pela crueldade e em várias regiões ou províncias de Espanha já foi proibida. Há países que mantém a tourada mas o touro não é morto. Diminuir a crueldade forma parte do processo civilizador ou da tarefa de nos humanizar. Vozes poderosas como as de Norbert Elias, Keith Thomas e Richard Rorty, entre outros, descreveram, sob diferentes pontos de vista, a difícil e longa tarefa de reduzir a crueldade. Contudo, a crueldade continua presente em muitos esportes e, em alguns de recente criação, tipo “quase tudo vale”, televisionados com êxito e no qual os brasileiros se destacam.

Antes da tourada eu tinha degustado em Córdoba – cidade de belos poemas de Federico Garcia Lorca e creio, se a memória não me engana – um saboroso rabo de touro, especialidade andaluza, parecida com nossa rabada, após elevar minha prece de desculpas para o touro morto.  Ou seja, creio que a crueldade não está em matar o touro, pois, como dizia Brillat Savarin, a “vida vive da morte”. Talvez não se mate menos quando comemos uma alface do que quando o fazemos com uma galinha. Claro, a alface não sangra, não grita nem se defende.

Minha indignação resulta de considerar a lida como injusta. Para mim a medalha tinha que ser do novilho. Ele tinha ganhado de goleada e igualmente foi morto. Eu teria conduzido o touro para o veterinário, cuidado das feridas das bandarilhas e o levado para algum prado generoso em pastos, água e sombra fresca e, se for possível, na companhia de belas novilhas. Minha indignação resulta de considerar a luta como injusta. O toureiro goza de muitas vantagens, embora de tempos em tempos, algum resulte ferido ou morto. A relação entre touros e toureiros mortos salienta a injustiça da lida. O combate desigual é injusto e, sobretudo, não pode ser considerado como esporte. O esporte, o jogo, parte da igualdade dos competidores. As armas do toureiro e do touro são desiguais.

A emoção da tourada, que é muita, deveria ser substituída por emoções baseadas em confrontos igualitários. Isto é, em esportes com maior conteúdo civilizador em termos de redução da crueldade. Mas, essa redução apenas parece possível com a elevação da igualdade. A desigualdade é campo fértil para a crueldade.

2 pensamentos sobre “Para mim, chega de touradas

  1. Acrescentaria que, em um esporte, os dois lados deveriam querer participar, conciente dos riscos e conhecedores das regras. Nenhum animal deveria ser usado para esportrs ou entretenimento. Isso eh falta de respeito com as outras especies. Parabens pelo texto e obrigada por levantar voz contra a barbarie.

  2. Também sou contra a utilização de animais por humanos, para qualquer finalidade. òtimo texto, Hugo. Eu não teria coragem de ir a um antro de sangue desses ver o inocente ser assassinado. Sobre se é ou não esporte, concordo com você que não é… porém, se usarmos o argumento acima, de que todos os envolvidos têm que aceitar livremente a participação no evento, o pólo e as corridas de cavalo também não deveriam ser considerados esportes, na acepção da palavra. Boa a notícia de que essa prática está sendo gradualmente banida, mesmo na Espanha.

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