O Hexa do Flamengo e o Dilema Brasileiro

Matéria originalmente publicada em 8 de dezembro de 2009 no jornal O Globo e também no Globo Online. Diante do reconhecimento oficial do título de 1987 do Flamengo pela CBF, consideramos oportuno republicar o conteúdo aqui no blog.

 

O Flamengo é hexacampeão brasileiro nos gritos da torcida, nas faixas, na imprensa e até no site da FIFA. Por que então uma minoria questiona o hexa? A discussão em torno da pergunta expressa o dilema da cultura brasileira, como colocado pelo antropólogo Roberto DaMatta: a tensão entre códigos impessoais e pessoais. A Copa União, idealizada pelo então recém-fundado Clube dos 13, vencida pelo Flamengo e pivô da polêmica, foi um marco no futebol brasileiro, obtendo a segunda melhor média de público da história até aquele momento.

A presença do dilema brasileiro aparece já nos antecedentes.

As regras do campeonato de 1986 haviam sido infringidas para favorecer um grande clube a entrar na segunda fase da competição, com três outros de menor expressão, apesar de não terem se classificado pelo regulamento. O campeonato de 1986 retornou em 1987, com o início dos torneios regionais, gerando complicações, pois os clubes que disputavam as semifinais recusaram-se a competir, naquele período, em seus campeonatos locais.

Em maio de 1987 a CBF afirmou que não tinha recursos para organizar o campeonato daquele ano.

Em 1985 um presidente civil assumiu o poder, após duas décadas de ditadura, sendo que desde 1984 a luta por eleições diretas e uma nova constituição espalharam-se pelo país. É neste cenário que surge o Clube dos 13.

Entre outras coisas, o Clube dos 13 propunha o campeonato com 13 clubes e a adoção do voto proporcional na CBF.

A política de troca de favores sustentava o poder político da CBF que, sob a égide do voto unitário, proporcionava às pequenas ligas e clubes um poder de decisão maior do que o dos grandes clubes

De um lado, a CBF – entidade amparada na legislação e, de outro, o Clube dos 13 -integrando os grandes clubes. Um campeonato sem esses clubes seria inconcebível. Mas se abandonassem CBF a FIFA não os reconheceria. A disputa entre o legal e o legítimo foi a base para o acordo entre as partes.

No dia 4 de setembro de 1987 foi noticiado o acordo. O campeonato teria 16 times no módulo verde e 16 no amarelo. O Clube dos 13 negociaria o evento enquanto a CBF incluía três times. Restava uma dúvida. O campeão do módulo verde (Copa União) seria o campeão brasileiro? No comunicado entregue à imprensa pela CBF estava escrito que “a classificação dos representantes do Brasil na Taça Libertadores da América ocorrerá na abertura da temporada de 1988, sob forma de um torneio quadrangular, integrado pelos dois primeiros colocados dos módulos verde e amarelo” (O Globo, 04/09/87). Por que esta cláusula esdrúxula? Por que os representantes nacionais na Libertadores teriam que sair de um quadrangular entre os campeões da primeira e da segunda divisão? Simplesmente porque o poder da CBF estava assentado no apoio de clubes de menor expressão, em uma política nociva de troca de favores que, por muitos anos, produzia campeonatos inchados e deficitários.

O Clube dos 13 não aceitou o quadrangular, visto como um retrocesso em relação as suas reivindicações e uma depreciação à competição, e a CBF, por razões políticas, manteve o que estava escrito. A conquista do campeonato de 2009 pelo Flamengo traz o impasse à tona outra vez. Fora do âmbito das relações jocosas entre torcidas, a desconsideração da CBF ao título do Flamengo em 1987 é um desrespeito aos atletas, torcedores e dirigentes dos clubes que participaram da competição. Retirar do Sport um título, ainda que esdrúxulo, que ele ostenta há 22 anos seria, no momento, indigno. A conciliação é inexorável. A CBF declararia dois campeões em 1987: o Flamengo e o Sport. Não seria a primeira vez com dois campeões. O campeonato carioca, por exemplo, teve dois campeões durante os anos de 1933 a 1936, já que a entidade máxima do futebol não reconhecia a recém-criada liga profissional. Mas é preciso dar um basta nesta oscilação entre códigos impessoais e pessoais. Este dilema, tal como colocado por Roberto DaMatta não pode ser uma marca indelével de nossa sociedade.

Outras fontes

Para mais informações sobre essa temática, não deixe de ler o livro Passes e Impasses: futebol e cultura de massa no Brasil, Petrópolis, Editora Vozes, 1997. Uma versão em português da tese de doutorado de Ronaldo Helal sobre a “crise do futebol brasileiro” (The Brazilian Soccer Crisis as a Sociological Problem) defendida em 1994 no departamento de sociologia da New York University. O capítulo sobre o surgimento e fundação do Clube dos 13 é central na tese e no livro.

3 pensamentos sobre “O Hexa do Flamengo e o Dilema Brasileiro

  1. A justiça tarda mas não falha.
    Esse reconhecimento me parece um “mea culpa” político da CBF visando a Copa 2014.
    Não querem “inimigos” planejando estragar a festa.
    Agora, 8 títulos pro Santos é ….(censurado)

  2. Ronaldo, falta apenas você explicar em que momento se definiu oficialmente que o módulo verde era a primeira divisão e o amarelo a segunda divisão. Não vejo isso no seu parágrafo explicativo. Você vê? Por favor, se for possível, explique. =)

    “No dia 4 de setembro de 1987 foi noticiado o acordo. O campeonato teria 16 times no módulo verde e 16 no amarelo. O Clube dos 13 negociaria o evento enquanto a CBF incluía três times. Restava uma dúvida. O campeão do módulo verde (Copa União) seria o campeão brasileiro? No comunicado entregue à imprensa pela CBF estava escrito que “a classificação dos representantes do Brasil na Taça Libertadores da América ocorrerá na abertura da temporada de 1988, sob forma de um torneio quadrangular, integrado pelos dois primeiros colocados dos módulos verde e amarelo” (O Globo, 04/09/87). Por que esta cláusula esdrúxula? Por que os representantes nacionais na Libertadores teriam que sair de um quadrangular entre os campeões da primeira e da segunda divisão? Simplesmente porque o poder da CBF estava assentado no apoio de clubes de menor expressão, em uma política nociva de troca de favores que, por muitos anos, produzia campeonatos inchados e deficitários.”

    1. Rodrigo,
      Naquele momento era necessário fazer uma clivagem, uma divisão entre os considerados clubes grandes e os “não grandes”. Veja que dos 13 clubes fundadores do movimento, 12 são considerados até hojes os maiores (em termos de torcida, títulos, jogadores na seleção etc). Na época, o Bahia também entrava fácil nesta lista. A imprensa da região sul e sudeste tratava o módulo verde como primeira divisão que, de fato, ainda não existia. O Clube dos 13 foi fundado com características revolucionárias, de transformar a organização do futebol no país. Deixou sementes como a criação de divisões, conselho arbitral, o parágrafo sobre esporte na Constituição de 1988, influenciou a Lei Zico e a Lei Pelé. Hoje, ele não tem as características da época. Voltando a sua pergunta. Oficialmente não se definiu que o módulo verde era a primeira divisão, apesar de o Clube dos 13 e a imprensa sul-sudeste o considerar desta maneira. Entendo perfeitamente que os clubes do módulo amarelo não tenham aceitado aquele módulo como segunda divisão. O que não entendo é os clubes fundadores do movimento que sempre foram contra o quadrangular se omitirem, por duas décadas, na questão “Flamengo Campeão Brasileiro de 1987”. Afinal, o quadrangular só não aconteceu por determinação do Clube dos 13. As torcidas adversárias não aceitarem o título de 1987 do Flamengo é perfeitamente compreensívell. Faz parte das relações jocosas entre torcidas. Mas os dirigentes do clube embarcarem nessa, ainda mais o clube fundador do movimento, o São Paulo, é falta de ética e ainda jogam no ralo a história do Clube dos 13. Só como exercício. Imaginemos que os grandes clubes do Rio de Janeiro resolvem formar uma liga separada da Federação (o que não é permitido por lei, creio), com o objetivo de organizar o campeonato carioca em bases mais rentáveis, e um dos quatro grandes do estado tenha terminado em último lugar o campeonato anterior. Você imagina este clube de fora do movimento? Na hora da clivagem, os recortes são feitos pelos que são considerados grandes. Não existe diferença, por exemplo, entre Vasco e Boavista, Flamengo e Olaria, Botafogo e América e Fluminense e Macaé, em termos de grandeza?

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