Zico, O Ídolo e a Honra

Por Ronaldo Helal

ZicoA saída de Zico do comando do futebol do Flamengo provocou uma reação imediata  de protesto da torcida. Ainda que os resultados do time tenham sido insatisfatórios  em sua curta    gestão, a idolatria ao ex-jogador se sobrepôs a sua carreira como  diretor. O protesto pode  estar revelando também a confiança da torcida de que o  futuro glorioso do futebol do  Flamengo estaria plantado nos investimentos no Centro  de Treinamento, que Zico tanto  insistia, e que era preciso um pouco de paciência, já  que este é um projeto de médio e longo prazo. Para o clube de maior torcida no país,  que vive de resultados imediatos, somente seu maior ídolo para conquistar a confiança e a paciência da torcida em um projeto de longo prazo.

Mas por que Zico se demitiu, já que tinha o carinho e a confiança de maior parte da torcida? Para responder esta pergunta é preciso antes lembrar que a trajetória vitoriosa de Zico, maior artilheiro e melhor jogador da história do Flamengo, foi sempre pautada no exercício do trabalho e do profissionalismo. Inclusive, a biografia de Zico ao enfatizar sobremaneira o trabalho e o esforço como ingredientes imprescindíveis ao êxito, antagoniza com parte do imaginário brasileiro que costuma reverenciar ídolos futebolísticos que já nascem prontos, que prescindem de treinamento e trabalho. A biografia de sucesso de Zico, também reverenciada no nosso imaginário, bate de frente com o mito de que o craque já nasce pronto e sua carreira permeada de obstáculos e de superação dos mesmos se assemelha ao modelo clássico de herói. Sua saída tem a ver com denúncias internas do clube que estariam atingindo sua honra.

Em sua carta de demissão, Zico deixa claro que sua honra e a de sua família estavam sendo atacadas, justamente naquilo que ele sempre mais prezou: ser exemplo de trabalho e profissionalismo. Em trecho da carta, ele diz: “Minha vida sempre foi calcada no trabalho, no respeito e no embate franco diante dos desafios. Não posso permitir que esse duelo covarde continue a acontecer usando a minha família, que vem se desgastando nas últimas semanas”. O duelo covarde a que Zico se refere diz respeito às acusações que partiam de dentro do clube, principalmente do Conselho Fiscal.  Em outro momento ele escreve: “Minha arma na guerra sempre foi o trabalho, a transparência e a lisura com as quais segui conduzindo cada negociação que fiz ao longo desse período como dirigente”. Zico disse mais de uma vez neste curto período como dirigente que aceitava críticas a sua gestão, mas não iria tolerar acusações que ferissem sua honra.

A justificativa de Zico para sua saída do Flamengo nos faz lembrar do episódio mais marcante e que atravessa toda a obra clássica de Homero,  A Ilíada. Logo em seu primeiro capítulo ficamos sabendo da ira de Aquiles, um dos maiores guerreiros gregos, que sai da guerra porque o rei, Agamenon, o teria ultrajado ao quebrar um código de honra relativo à partilha dos bens das cidades saqueadas. A saída de Zico, sob protestos da torcida que o reverencia, assim como Aquiles era reverenciado pelos seus soldados, representa uma perda difícil de ser mensurada em um momento tão delicado que atravessa o Flamengo. Na Íliada, Aquiles retorna à luta para se vingar da morte de seu primo, Pátroclo, e os gregos terminam vencendo a guerra.

Não sabemos se e quando Zico retornará ao Flamengo como dirigente. A única certeza neste dramático episódio é a de que Zico continuará eterno no coração da torcida. Tristes, a maioria, e decepcionados, outros tantos, os torcedores continuarão levando aos estádios as bandeiras com o rosto do ídolo e gritarão o famoso coro: “hei, hei, hei, o Zico é nosso rei.”

Publicado originalmente no jornal O Globo Impresso do dia 2 de outubro de 2010, na pág. 7.

Para conferir o artigo também no Globo online, clique aqui.

Um pensamento sobre “Zico, O Ídolo e a Honra

  1. Bom texto. interessante a lembrança do paralelo Homérico.
    Mas, como os resultados indicam, a saída do ídolo foi salutar para o rubro-negro.
    ponto

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